domingo, 31 de maio de 2015

A Costureirinha da Sé (1958)


Eis que, para surpresa de todos, o nosso cineasta "neo-realista" realiza uma comédia musical. A Costureirinha da Sé (1958), além de ser um filme ligeiro, seria ainda ostensiva e ironicamente – pela publicidade que inclui – o filme mais comercial da história do cinema português; o que lhe valeria a censura geral (a outra censura, a do juízo dos críticos) que não estava preparada para esse desvio ideológico e que doravante tomaria Manuel Guimarães como um proscrito da história do cinema.

Com esta concessão ao cinema comercial, Guimarães desiludia completamente:
«Manuel Guimarães voltou as costas à arte para tentar o espectáculo. (...) Filme popular, sem outros intuitos que não fossem os de distrair a plateia e conseguir um filme de espectáculo. A costureirinha da Sé marca um impasse na carreira de Manuel Guimarães. Resultado do fracasso financeiro de Vidas sem rumo e da própria falta de receptividade do cinema nacional? Momento de pausa na procura de outros caminhos? Não sabemos. Sabemos, sim, que Manuel Guimarães é um artista consciencioso e não o podemos atacar de modo nenhum por ter feito A costureirinha da Sé, pois sabemos em que meio se exerce em Portugal a profissão de cineasta».

Por isso mesmo foi atacado e perdeu os favores ou a consideração da crítica:
«Sentimos, por isso, que devemos não esquecer estar Manuel Guimarães em dívida para o cinema nacional. Tudo o que nos prometeu com Saltimbancos primeiro e depois com Nazaré – um pouco mais de esperança em Vidas sem Rumo – não encontrou seguimento na Costureirinha da Sé. Aguardamos que o próximo filme de Guimarães não constitua desilusão»

(José Reis in revista Plateia de 5 de Janeiro de 1963, na expectativa do próximo filme O Crime de Aldeia Velha).

Texto compilado a partir de «Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães», de Leonor Areal, in Actas das II Jornadas de Cinema Português, UBI, 2011.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Rever Manuel Guimarães na Cinemateca - Obra integral

Abertura a 8 de Junho

08-06-2015, 21h30 | Sala M. Félix Ribeiro
Manuel Guimarães – Abertura

Em colaboração com o Museu do Neo-Realismo
SALTIMBANCOS
de Manuel Guimarães
com Maria Olguim, Helga Liné, Artur Semedo, Fernando Gusmão
Portugal, 1951 - 92 min | M/12
 
Primeira longa-metragem de Manuel Guimarães (também produtor), SALTIMBANCOS marcou a diferença no cinema português do começo da década de cinquenta relativamente às comédias "à portuguesa" que então se faziam, procurando aproximar-se dos modelos do neorrealismo italiano, numa história adaptada do romance O Circo, de Leão Penedo, sobre a vida e a morte de uma companhia de saltimbancos. A apresentar em cópia resultante de um processo de preservação de 2005.
http://www.cinemateca.pt/Programacao.aspx?id=4198&date=2015-06-08

Vidas sem Rumo (1952-56)


O terceiro filme, Vidas sem Rumo (1952-56), foi severamente mutilado, pela censura oficial como pela censura comercial, levando a cortes de 45%, o que obrigou o autor a refilmar e a reconstituir a intriga, demorando mais três anos até estar pronto a estrear. Tinha argumento de Alves Redol, mas, depois dos cortes, este autor apenas assumiu os diálogos.

Na recepção de Vidas sem Rumo, em 1956, a severidade da crítica já é maior:
«Vidas sem rumo não é um passo em frente na cinematografia nacional mas também não é um passo à rectaguarda – o que já é raro e notável. “Vidas sem rumo” pretende ser neo-realista e lírico. É ambas as coisas em extremo, o que resulta numa super realidade poética, estranha e fantástica. “Vidas sem rumo” pretende ser humano. As figuras não são suficientemente analisadas e o nosso contacto com elas é superficial e rápido» (Visor 18 in Diário de Lisboa, 13 de Setembro de 1956).

Manuel de Azevedo, aparentemente ignorando os cortes infligidos pela Censura e a odisseia de recuperação do filme, acusa a fragilidade narrativa:
«Por isto ou por aquilo, à obra de Manuel Guimarães falta talvez um clima favorável, para ter o acabamento e a solidez indispensáveis. O certo é que, perante os filmes de Manuel Guimarães, não podemos deixar de ter simpatia, compreensão e um certo prazer espiritual. Mas a fragilidade e a incipiência da construção e da narrativa anulam, em parte, o que há de bem intencionado e até de efectivamente conseguido» (Manuel de Azevedo. À Margem do Cinema Nacional. Porto: Cine-clube, 1956: 47).

Curiosamente, diz o realizador que este foi o seu único filme que se pagou na bilheteira, depois de 3 semanas em cartaz no Teatro da Trindade em Lisboa.

Texto compilado a partir de «Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães», de Leonor Areal, in Actas das II Jornadas de Cinema Português, UBI, 2011.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Nazaré (1952)


O segundo filme, Nazaré (1952), integra-se numa linhagem de filmes situados na Nazaré e noutras praias mais a norte, mas apresenta uma visão desmistificadora da vida dos pescadores, encarnada aqui em anti-heróis que subvertem a anterior visão mítica do seu sacrifício.

Estreado em 12 de Dezembro de 1952, no Éden em Lisboa, ao fim de 5 dias em cartaz, a publicidade ao filme anunciava que tinha já sido visto por 27 mil espectadores. Permaneceu em cartaz durante três semanas. A recepção crítica ao filme foi também de aplauso, apesar de os cortes aplicados pela Censura terem provocado lacunas narrativas que o tornam um objecto mais frágil.

Em 1954, Manuel de Azevedo escrevia:
«Não há dúvida de que o caso de Manuel Guimarães, por exemplo, nunca foi tratado com o carinho que merece e apontado pelo que representa de sincero esforço de reabilitação. Os seus filmes “Saltimbancos” e “Nazaré”, sendo embora insuficientes pela imprecisão estilística e falta de profundidade dramática, representam, no entanto, qualquer coisa de diferente, de sincero, de merecedora de respeito e interesse. Dizer que as suas obras não valem porque não são perfeitas, é o mesmo que exigir que todos os artistas sejam génios; ou que toda a criação seja uma obra prima» (Manuel de Azevedo. À Margem do Cinema Nacional, Porto, Cine-clube, 1956, p. 47).

Sobre este filme dirá Luís de Pina:

«O argumento tem veracidade e dramatismo, mas de novo essas qualidades se perdem no melodrama exagerado e num deficiente controlo de sentimentos. Há cenas magníficas e outras medíocres, todas elas rodeadas, sempre que possível, de um vigor plástico  muitas vezes fora do comum. Talvez por deficiente interpretação, as figuras não assumem a grandeza que a marca do quotidiano heróico lhes dá» (Luís de Pina, «Manuel Guimarães», revista Filme, n.º 25, Abril 1961, p. 35).

A crítica, mais uma vez, ignorava ou fingia ignorar que as inconsistências notadas eram resultado da acção da Censura, que neste filme cortou cerca de 20%, segundo revelou o autor anos mais tarde, após o 25 de Abril de 1974.

Cartaz de Manuel Guimarães. 

Texto compilado a partir de «Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães», de Leonor Areal, in Actas das II Jornadas de Cinema Português, UBI, 2011.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Saltimbancos (1951)


O primeiro filme, Saltimbancos (1951), foi saudado pela crítica e pelos escritores neo-realistas na revista Imagem que lhe dedicou um número especial (n.º 13, de Janeiro 1952). O tom foi de entusiasmo:

«Esperemos que “Saltimbancos” represente o primeiro passo no sentido da emancipação – que já vai tardando – do nosso cinema»;

«Acreditamos que “Saltimbancos” é um heróico e honesto passo em frente no Cinema Português. Não uma pomposa etapa vencida, não. Mas algo de diferente, de mais digno»;

«Manuel Guimarães, ao realizar “Saltimbancos”, propôs-se uma tarefa que, só por si, o torna credor do nosso inteiro aplauso e do nosso incondicional apoio: afastar o cinema português dos trilhos fáceis e inconsequentes em que erradamente anda perdido – e orientá-lo no sentido da realidade, dos problemas humanos vividos por personagens reais e autênticos, directamente arrancadas à multidão anónima com que nos cruzamos a cada passo» (Luís Francisco Rebelo).

Embora houvesse críticas menos elogiosas:

«Faltou o domínio sobre a ficção, a arte da sequência, o poder da emoção dramática» (Roberto Nobre).

Bénard da Costa "respiga, quase ao acaso, algumas citações mais emblemáticas" (in Textos CP de 11 de Março de 1997):

«Que nos deu o Cinema Nacional de mais vivo, de mais pungente?» (Romeu Correia);

«... o trabalho de Manuel Guimarães é um acontecimento histórico no cinema português (...) conseguiu restabelecer-nos a confiança numa altura em que o cinema da nossa terra acabara por ser uma cidadela de analfabetos e comerciantes, por assim dizer inexpugnável” (Fernando Namora);

«Saltimbancos é, no quadro da cinematografia portuguesa, uma obra excepcional (...) vem mostrar que se abre ao cinema português um caminho realista” (Piteira Santos);

«Saltimbancos fica na nossa história do cinema (...) como o primeiro filme inteiro, de intenção firmemente honesta e nada transigente com êxitos fáceis que se produziu em Portugal» (Cardoso Pires)».

Saltimbancos estreou em 24 de Outubro de 1951 no cinema Batalha no Porto, e em Lisboa em 15 de Janeiro de 1952 no Éden.

Sobre a existência de cortes aplicados pela Censura em Saltimbancos, temos apenas a informação dada por Bénard da Costa: «Em 51, Guimarães (...) adaptou às telas um romance de Leão Penedo, escritor neo-realista, intitulado Saltimbancos. Quase todos os “intelectuais de esquerda” saíram à liça para defender a obra, que se sabia ter sofrido algumas tesouradas da censura.»
(João Bénard da Costa. Histórias do Cinema. Lisboa: IN-CM, 1991, p.108)

Texto compilado a partir de «Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães», de Leonor Areal, in Actas das II Jornadas de Cinema Português, UBI, 2011:.

domingo, 24 de maio de 2015

Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães




É peculiar a situação do movimento neo-realista que no cinema português tem um único representante, Manuel Guimarães, com obra razoavelmente numerosa, pois, entre as décadas de 50 e 70, realizou 8 longas-metragens e 20 documentários. No campo da ficção cinematográfica, ele  é todo o cinema neo-realista português – movimento composto de um só cultor - apesar de alguma historiografia lhe recusar esse lugar, ora negando a existência de neo-realismo em Portugal, ora englobando nessa categoria filmes de outros realizadores que descaracterizam esse neo-realismo que se diz que não houve...

Aceitemos que o cinema português estava desfasado, como toda a sociedade portuguesa estava, dos restantes países da Europa. O neo-realismo português no cinema foi escasso, mas é tudo quanto nos resta de interessante como expressão cinematográfica contracorrente na década de 50. Um grito na escuridão, é assim que devemos olhar para o cinema de Manuel Guimarães, ainda que uns possam achá-lo imperfeito, esquecendo quanto foi mutilado pela Censura e por outras restrições a que o imperativo comercial o sujeitava.

Em Portugal, o movimento neo-realista está sobretudo ligado a uma geração que se define por referentes literários e ideológicos comuns, tanto como por afinidades e amizades. A literatura neo-realista tem uma expressão fortíssima em Portugal das décadas de 40, 50 e 60 e influenciou várias gerações subsequentes.

Embora muitas obras do neo-realismo literário tenham sido transpostas para o cinema - em adaptações várias que continuarão pelas décadas seguintes, marcando uma visão política da sociedade portuguesa e diversas reconstituições históricas - não podemos apelidá-las de cinema neo-realista quando, em certos casos (Jorge Brum do Canto ou Perdigão Queiroga, por exemplo), o tratamento narrativo acaba por revelar um ponto de vista ideologicamente conformista. O que definirá o cinema neo-realista português será sobretudo uma atitude de resistência ideológica que não pode confundir-se meramente com a adaptação a argumento de tal ou tal romance.

A obra de Guimarães afirma-se perante dificuldades concretas num contexto onde está fora de possibilidade a expressão autêntica de uma visão antagonista da sociedade. Como a combatividade não podia ser mostrada, logo, não podia existir, o que temos é um neo-realismo de resistência.

(excerto de «Um neo-realismo singular: o cinema de Manuel Guimarães» por Leonor Areal, in Frederico Lopes (org.), Cinema em Português, UBI, 2011: http://www.livroslabcom.ubi.pt/book/17).

Fotografia de Maria Eduarda Colares

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Biofilmografia

(excerto de artigo «Morreu Manuel Guimarães» in Diário de Lisboa, 30-1-1975, assinado por Lauro António)


Transcrição:

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Manuel Guimarães, sonhador indómito

Museu do Neo-Realismo recebe exposição sobre Manuel Guimarães



in Boletim Municipal de Vila Franca de Xira, nº5, Maio-Junho 2015
http://issuu.com/cmvfx/docs/bm5_maijun

domingo, 10 de maio de 2015

Biografia


Manuel Guimarães, nascido em Albergaria-a-Velha em 1915, cresceu no Porto onde seus pais tinham uma pensão (Pensão do Bolhão, depois a Pensão Aliados). Estudou pintura na Escola de Belas-Artes do Porto, tendo como mestre Dordio Gomes e como colega Júlio Resende, entre outros. Desde cedo fez ilustração para a revista Repórter X e para o Jornal de Notícias, tendo realizado várias exposições de artes plásticas na sua juventude. 

Estreou-se no cinema como assistente geral de Manoel de Oliveira em Aniki-Bobó (1942). Em 1949 realizou a curta-metragem O Desterrado, premiada pelo SNI. Em 1951 concretizou o filme de fundo Saltimbancos, primeira obra neo-realista do cinema português, a que se seguiram mais sete longas-metragens e uma vintena de documentários. A censura salazarista estropiou alguns dos seus filmes, sobretudo Nazaré (1952), Vidas sem Rumo (1956) e O Trigo e o Joio (1965), deixando marcas severas numa obra que a crítica não soube valorizar. 

Guimarães morreu em 1975, sem conseguir concluir a montagem do seu último filme, Cântico Final (a partir do romance homónimo de Vergílio Ferreira) e a sua obra caiu no esquecimento. Foi o único realizador neo-realista do cinema português, o único que ofereceu resistência ideológica ao regime, quiçá o mais sacrificado de todos.

A vida e a obra do cineasta Manuel Guimarães foram marcadas pela penúria, pelos sacrifícios inúmeros, pela resistência ao regime totalitário. Mas a obra é feita de permanente sonho e lirismo, de emoções trabalhadas em busca da perfeição impossível – sempre negada pelos cortes da censura. Desse confronto doloroso da arte com a violência do regime, nasce uma obra de tonalidades quase tristes, mas sempre combativa, que neste ano do centenário queremos dar a ver e reviver.